segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Línguas de chuva

      Na língua macua as primeiras chuvas são chamadas de "aparição de Deus", dada a sua importância depois de um longo período de seca. Aqui no norte a "aparição" se dá mais ou menos a partir da segunda quinzena de novembro continuando até meados de janeiro. É nessa época que as pessoas fazem o plantio do milho branco (base da alimentação daqui), já que o milho precisa de muita água para se desenvolver bem. Acontece que nesse ano Deus "apareceu" por aqui e depois foi aparecer por outras bandas. Tivemos algumas chuvas logo no começo de novembro e depois.....nada.
     Passamos então a enfrentar a época mais seca desde que nos mudamos pra cá em junho de 2010. O poço apesar de ter sido novamente "afundado" não conseguiu produzir quase nada de água. A solução era comprar água de 3 em 3 dias na central de água daqui (FIPAG). Nos últimos tempos a necessidade era tanta que para conseguir 2000 litros tínhamos que passar umas 6 horas na fila. Nós temos condições financeiras de comprar água, e a maioria das pessoas que vivem aqui? Muitos caminhavam longas distâncias para poder encher seus galões de 25 litros, sempre transportados na cabeça. Era muito comum ouvirmos o seguinte diálogo:
- Como vai a saúde lá em casa?
- Estamos bem, mas iiiiiiiihhhhhhhhh, muito sofrimento de água.
    Sofrimento de água. E ao perguntar para as pessoas porque não chovia a resposta era: Deus está nos castigando, ou os feiticeiros não deixam chover porque os meninos ainda estão no mato. Isso significa que ainda havia muitos meninos participando do ritual de iniciação masculino (masoma) aonde eles são circuncidados e ficam cerca de 1 mês para curarem e voltarem para casa.
    Nesse ano resolvemos  fazer o masoma lá no CECORE com 23 meninos. Decidimos assim porque além das questões espirituais e de saúde envolvidas, no mato, as crianças costumam apanhar, ser humilhadas e ofendidas no ritual tradicional (pra ver se vira homem). Os meninos estão lá no CECORE, nas salas recém construídas. Só saem para ir ao banheiro e mesmo assim por um corredor de palha, pois nós mulheres não podemos vê-los.
    São um pouco mais de três da manhã e eu tive que levantar para escrever esse texto. Sabe porque? Acaba de chover. A empolgação era tanta que não consegui voltar a dormir. Chuva, em macua é epula, só separada da palavra nariz por um h (ephula). Aqui a chuva não cai, ela dorme (orupa). Acho que então vou dormir também.
  Hoje para mim as palavras de Davi têm novo significado:
"Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma."